Crenças e Negações
O Egito
Às portas do deserto erguem-se
os templos, os pilonos e as pirâmides, florestas de pedra debaixo de um céu de
fogo. As esfinges, retraídas e sonhadoras, contemplam a planície, e as necrópoles,
talhadas na rocha, abrem seus sólios profundos à margem do rio silencioso. É o
Egito, terra estranha, livro venerável, no qual o homem moderno apenas começa a
soletrar o mistério das idades, dos povos e das religiões.[i]A Índia, diz a maior parte dos
orientalistas, comunicou ao Egito a sua civilização e a sua fé; outros, não
menos eruditos, afirmam que, em época remota, já a terra de Ísis possuía suas
próprias tradições.[ii] Estas são a herança de uma raça extinta, a vermelha, que
ocupava todo o continente austral, e que foi aniquilada por lutas formidáveis contra
os brancos e por cataclismos geológicos. A Esfinge de Gizé, anterior em vários
milhares de anos à grande pirâmide,[iii] e levantada pelos vermelhos no ponto em que o Nilo se
juntava então ao mar,[iv] é um dos raros monumentos que esses tempos remotos nos legaram.
A leitura das estrelas,[v] a dos papiros encontrados nos túmulos, permite reconstituir
a história do Egito, ao mesmo tempo em que essa antiga doutrina do Verbo-Luz,
divindade de tríplice natureza, simultaneamente inteligência, força e matéria:
espírito, alma e corpo, que oferece uma analogia perfeita com a filosofia da
Índia. Aqui, como lá, encontra-se, debaixo da grosseira forma cultual, o mesmo
pensamento oculto. A alma do Egito, o segredo da sua vitalidade, o do seu papel
histórico, é a doutrina oculta dos seus sacerdotes, cuidadosamente velada sob
os mistérios de Ísis e Osíris, e experimentalmente analisada, no fundo dos
templos, por iniciados de todas as classes e de todos os países.
Sob formas austeras, os
princípios dessa doutrina eram expressos pelos livros sagrados de Hermes, que
constituíam uma vasta enciclopédia. Ali se encontravam classificados os
conhecimentos humanos, mas nem todos os livros chegaram até nós. A ciência
religiosa do Egito foi-nos restituída sobretudo pela leitura dos hieróglifos.
Os templos são igualmente livros, e pode-se dizer que na terra dos faraós as
pedras têm voz.
Um dos grandes sábios
modernos, Champollion, descobriu três espécies de escrita nos manuscritos e
sobre os templos egípcios.[vi] Por aí ficou confirmada a opinião dos antigos, isto é, que
os sacerdotes empregavam três classes de caracteres: os primeiros, demóticos, eram simples e claros; os
segundos, hieráticos, tinham um
sentido simbólico e figurado; os outros eram hieróglifos. É o que Heráclito
exprimia pelos termos de falante,
significante e ocultante.
Os hieróglifos tinham um
triplo sentido e não podiam ser decifrados sem chave. A esses sinais
aplicava-se a lei da analogia que rege os mundos: natural, humano e divino, e
que permite exprimir os três aspectos de todas as coisas por combinações de
números e figuras, que reproduzem a simetria harmoniosa e a unidade do
Universo. É assim que, num mesmo sinal, o adepto lia, ao mesmo tempo, os
princípios, as causas e os efeitos, e essa linguagem tinha para ele extraordinário
valor. Saído de todas as classes da sociedade, mesmo das mais ínfimas, o
sacerdote era o verdadeiro senhor do Egito; os reis, por ele escolhidos e
iniciados, só governavam a nação a titulo de mandatários. Altas concepções, uma
profunda sabedoria, presidiam aos destinos desse país. No meio do mundo
bárbaro, entre a Assíria feroz, apaixonada, e a África selvagem, a terra dos
faraós era como uma ilha açoitada pelas ondas em que se conservavam as puras
doutrinas, a ciência secreta do mundo antigo.
Os sábios, os pensadores, os
diretores de povos, gregos, hebreus, fenícios, etruscos, iam beber nessa fonte.
Por intermédio deles, o pensamento religioso derramava-se dos santuários de
Ísis sobre todas as praias do Mediterrâneo, fazendo despontar civilizações diversas,
dessemelhantes mesmo, conforme o caráter dos povos que as recebiam, tornando-se
monoteísta, na Judéia, com Moisés, politeísta, na Grécia, com Orfeu, porém
uniforme em seu princípio oculto, em sua essência misteriosa.
O culto popular de Ísis e de Osíris
não era senão uma brilhante miragem oferecida à multidão. Debaixo da pompa dos
espetáculos e das cerimônias públicas ocultava-se o verdadeiro ensino dos
pequenos e grandes mistérios. A iniciação era cercada de numerosos obstáculos e
de reais perigos. As provas físicas e morais eram longas e múltiplas. Exigia-se
o juramento de sigilo, e a menor indiscrição era punida com a morte. Essa
temível disciplina dava forma e autoridade incomparáveis à religião secreta e à
iniciação. À medida que o adepto avançava em seu curso, descortinavam-se-lhe os
véus, fazia-se mais brilhante a luz, tornavam-se vivos e animados os símbolos.
A Esfinge, cabeça de mulher em
corpo de touro, com garras de leão e asas de águia, era a imagem do ser humano
emergindo das profundezas da animalidade para atingir a sua nova condição. O
grande enigma era o homem, trazendo em si os traços sensíveis da sua origem,
resumindo todos os elementos e todas as forças da natureza inferior.
Deuses extravagantes com
cabeça de pássaros, de mamíferos, de serpentes, eram outros símbolos da vida,
em suas múltiplas manifestações. Osíris, o deus solar, e Ísis, a grande
Natureza, eram celebrados por toda parte; mas, acima deles, havia um Deus inominado,
de que só se falava em voz baixa e com timidez.
Antes de tudo, o neófito
aprendia a conhecer-se. O hierofante falava-lhe assim:
“Oh! alma cega, arma-te com o
facho dos mistérios e, na noite terrestre, descobrirás teu dúplice luminoso,
tua alma celeste. Segue esse gênio divino e que ele seja teu guia, porque tem a
chave das tuas existências passadas e futuras.”
No fim de suas provas,
fatigado pelas emoções, tendo dez vezes encarado a morte, o iniciado via
aproximar-se dele uma imagem de mulher, trazendo um rolo de papiros.
“Sou tua irmã invisível, dizia
ela, sou tua alma divina, e isto é o livro da tua vida. Ele encerra as páginas
cheias das tuas existências passadas e as páginas brancas das tuas vidas
futuras. Um dia as desenrolarei todas diante de ti. Agora me conheces. Chama-me
e eu virei.”
Enfim, na varanda do templo,
debaixo do céu estrelado, diante de Mênfis ou Tebas adormecidas, o sacerdote
contava ao adepto a visão de Hermes, transmitida vocalmente de pontífice a
pontífice e gravada em sinais hieroglíficos nas abóbadas das criptas subterrâneas.
Um dia, Hermes viu o espaço,
os mundos e a vida, que em todos os lugares se expandia. A voz da luz que
enchia o infinito revelou-lhe o divino mistério:
“A luz que viste é a
Inteligência Divina que contêm todas as coisas sob seu poder e encerra os
moldes de todos os seres.
“As trevas são o mundo
material em que vivem os homens da Terra.
“O fogo que brota das
profundezas é o Verbo Divino:
Deus é o Pai, o Verbo é o
Filho, sua união faz a Vida.
“O destino do Espírito humano
tem duas fases: cativeiro na matéria, ascensão na luz. As almas são filhas do
céu, e a viagem que fazem é uma prova. Na encarnação perdem a reminiscência de
sua origem celeste. Cativas pela matéria, embriagadas pela vida, elas se
precipitam como uma chuva de fogo com estremecimentos de volúpia, através da
região do sofrimento, do amor e da morte, até à prisão terrestre em que tu
mesmo gemes, e em que a vida divina parece-te um sonho vão.
“As almas inferiores e más
ficam presas à Terra por múltiplos renascimentos, porém as almas virtuosas
sobem voando para as esferas superiores, onde recobram a vista das coisas
divinas. Impregnam-se com a lucidez da consciência esclarecida pela dor, com a
energia da vontade adquirida pela luta. Tornam-se luminosas, porque possuem o
divino em si próprias e irradiam-no em seus atos. Reanima pois teu coração, ó
Hermes, e tranqüiliza teu espírito obscurecido pela contemplação desses vôos de
almas subindo a escala das esferas que conduz ao Pai, onde tudo se acaba, onde
tudo começa eternamente. E as sete esferas disseram juntas: Sabedoria! Amor!
Justiça! Beleza! Esplendor! Ciência! Imortalidade!”.[vii]O pontífice acrescentava:
“Medita sobre esta visão. Ela
encerra o segredo de todas as coisas. Quanto mais souberes compreendê-la, tanto
mais verás se alargarem os seus limites, porque governa a mesma lei orgânica os
mundos todos. Entretanto, o véu do mistério cobre a grande verdade, pois o
conhecimento total desta só pode ser revelado àqueles que atravessarem as
mesmas provas que nós. É preciso medir a verdade segundo as inteligências, velá-la
aos fracos porque os tornaria loucos, ocultá-la aos maus que dela fariam arma
de destruição. A ciência será tua força, a fé tua espada, o silêncio teu escudo.”
A ciência dos sacerdotes do
Egito ultrapassava em bastantes pontos a ciência atual. Conheciam o Magnetismo,
o Sonambulismo, curavam pelo sono provocado e praticavam largamente a sugestão.
É o que eles chamavam “Magia”.[viii]O alvo mais elevado a que um
iniciado podia aspirar era a conquista desses poderes, cujo emblema era a coroa
dos magos.
“Sabei, diziam-lhe, o que
significa esta coroa. Tua vontade, que se une a Deus para manifestar a verdade
e operar a justiça, participa, já nesta vida, da potência divina sobre os seres
e sobre as coisas, recompensa eterna dos espíritos livres”.
O gênio do Egito foi prostrado
pela onda das invasões. A escola de Alexandria colheu algumas das suas
parcelas, que transmitiu ao Cristianismo nascente. Antes disto, porém, os
iniciados gregos tinham feito penetrar as doutrinas herméticas na Hélade. É aí
que vamos encontrá-las.
[i] Ver as obras de François Lenormant e
Maspéro.[ii] Maneton atribui aos templos egípcios uma
tradição de trinta mil anos.[iii] Um manuscrito da quarta dinastia (4000 anos a.C.)
relata que a Esfinge, enterrada nas areias e olvidada desde séculos, foi
encontrada fortuitamente nessa época. (Histoire
d’Orient, por Lenormant.)[iv] O delta atual foi formado pelas aluviões
sucessivas depositadas pelo Nilo.[v] Colunas
herméticas.
[vi] L’Egypte sous le Pharaons, por Champollion.
[vii] Ver Pimander.
o mais autêntico dos livros de Hermes Trimegisto.[viii] Diodoro da Sicilia e Estrabão referem que os
sacerdotes do antigo Egito sabiam provocar a clarividência com um fim
terapêutico. Galien menciona um templo perto de Mênfis, célebre por curas
hipnóticas.
LEON DENIS
23:56
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