Na mansão dos
mortos
- O amigo sabe que os fotógrafos ingleses
registraram a presença de sir Conan Doyle no enterro de lady
Gaillard?
Esta pergunta me foi dirigida pelo coronel
C. da C., (1) que eu conhecera numa das minhas viagens pelo Nordeste. O coronel
lia por desfastio as minhas crônicas e em poucos minutos nos tornamos camaradas.
Há muito tempo, todavia, soubera eu da sua passagem para o outro mundo em
virtude de uma arteriosclerose generalizada. Tempo vai, tempo vem,
defrontamo-nos de novo no vagão infinito da Vida, em que todos viajamos,
através da eternidade. E, como o melhor abraço que podemos dar longe dos vivos,
ali estávamos os dois tête à tête, sem pensar no relógio que regulava os
nossos atos no presídio da Terra, nem nos ponteiros do estômago, que aí
trabalham com demasiada pressa.
(1) No original da mensagem foram dados os nomes das
pessoas nela mencionados. Como, porém, essas pessoas deixaram descendentes, que
poderiam molestar-se com as referências que lhes fez Humberto de Campos, resolvemos
indicá-la apenas pelas suas iniciais
C. tinha no mundo idéias espíritas e
continuava, na outra vida, a interessar-se pelas coisas de sua doutrina.
Então, coronel, a vida que levaremos por
aqui não será muito diversa da que observávamos lá em baixo? Um morto, pode
apresentar-se nas solenidades dos vivos, participar das suas alegrias e das
suas tristezas, como no presente caso? Aliás, já sabemos do capítulo evangélico
que manda os mortos enterrar os mortos.
- Pode, sim, menino – replicou o meu amigo
como quem evocasse uma cena dolorosa – mas, isso de acompanhar enterros,
sobra-me experiência para não mais fazê-lo. Costumamos observar que, se os
vivos têm medo dos que já regressaram para cá, nós igualmente, às vezes,
sentimos repulsa de topar os vivos. Porém, o que lhe vou contar ocorreu entre
os considerados mortos. Tié medo de dois espectros num ambiente soturno de
cemitério.
E o meu amigo, com o olhar mergulhado no
pretérito longínquo, monologava:
- Desde essa noite, nunca mais acompanhei
enterros de amigos... Deixo isso para os encarnados, que vivem brincando de
cabra-cega no seu temporário esquecimento...
- Conte-me, coronel, o acontecimento –
disse eu, mal sopitando a curiosidade.
- Lembra-se – começou ele – da admiração
que eu sempre manifestava pelo Dr. A.F., que você não chegou a conhecer em
pessoa?
- Vagamente...
- Pois bem, o Antonico, nome pelo qual
respondia na intimidade, era um dos meus amigos do peito. Advogado de renome na
minha terra, já o conheci na elevada posição que usufruía no seio da sociedade
que lhe acatava todas as ações e pareceres.
Pardavasco, insinuante, era o tipo do
mulato brasileiro. Simpático, inteligente, captava a confiança de quantos se
lhe aproximavam. Era de uma felicidade única. Ganhava todas as causas que lhe
eram entregues. O crime mais negro apresentava para a sua palavra percuciente
uma argumentação infalível na defesa. Os réus, absolvidos com a sua colaboração,
retiravam-se da sala de sessões da justiça quase canonizados. O Antonico se
metera em alguma pendência? O triunfo era dele. Gozava de toda a nossa
consideração e estima. Criara a sua família com irrepreensível moralidade. Em
algumas cerimônias religiosas a que compareci, recordo-me de lá o haver
encontrado, como bom católico, em cuja personalidade o nosso vigário via um dos
mais prestigiosos dos seus paroquianos.
Chefiava iniciativas de caridade, presidia
a associação religiosa e primava pela austeridade intransigente dos seus costumes.
Quando voltei desse mundo, que hoje
representa para nós uma penitenciaria, trouxe dele saudosas recordações.
Imagine, pois o meu desejo de
reencontrá-lo, quando vim a saber, nestas paragens, que ele se achava às portas
da morte. Obtive permissão para excursionar à Terra e fui revê-lo na sua cama
de luxo, rodeado de zelos extremos, numa alcova ensombrada de sua confortável residência.
As poções eram ingeridas. Injeções eram aplicadas. Os médicos eram
atenciosamente ouvidos. Contudo, a morte rondava o leito de rendas, com o seu
passo silencioso. Depois de ter o abdômen rasgado por um bisturi, uma infecção
sobreviera inesperadamente.
Apareceu uma pleurisia e todas as punções
foram inúteis. Antonico agonizava. Vi-o nos seus derradeiros momentos, sem que
ele me visse na sua semi-inconsciência. Os médicos à sua cabeceira, deploravam
o desaparecimento do homem probo. O padre, que sustinha naquelas mãos de cera u
delicado crucifixo, recitando a oração dos moribundos, fazia ao céu piedosas
recomendações. A esposa chorava o esposo, os filhos o pai! Aos meus olhos,
aquele quadro era o da morte do justo. Transcorridas algumas horas, acompanhei
o fúnebre cortejo que ia entregar à terra aqueles despojos frios.
Desnecessário é que lhe diga das pomposas
exéquias que a igreja dispensou ao morto, em virtude da sua posição eminente.
Preces. Aspersões com hissopes ensopados n’água benta e latim agradável.
Mas, como nem todos os que morrem
desapegam imediatamente dos humores e das vísceras, esperei que o meu amigo acordasse
para ser o primeiro a abraçá-lo.
Era crepúsculo. E, naquela tarde de
agosto, as nuvens estavam enrubescidas, em meio do fumo das queimaduras,
parecendo uma espumarada de sangue. Havia um cheiro de terra brava, entre as
lousas silenciosas, ao pé dos salgueiros e dos ciprestes. Eu esperava. De vez
em quando, o vento agitava a ramaria dos chorões, que pareciam soluçar, numa
toada esquisita. Os coveiros abandonaram a sua tarefa sinistra e eu vi um vulto
de mulher, esgueirando-se entre as lápides enegrecidas. Parou junto daquela
cova fresca. Não se tratava de nenhuma alma encarnada. Aquela mulher pertencia
também aos reinos das sombras. Observei-a de longe. Todavia, gritos
estentóricos ecoaram aos meus ouvidos.
- A. F. – exclamou o espectro – chegou o
momento da minha vingança! Ninguém poderá advogar a tua causa. Nem Deus, nem o
Demônio poderão interceder pela tua sorte, como não puderam cicatrizar no mundo
as feridas que abriste em meu coração. Todas as nossas testemunhas agora são
mudas. Os anjos aqui são de pedra e as capelas de mármore, cheias de cruzes
caladas, são estojos de carne apodrecida. Lembras-te de mim? Sou a R. S., que
infelicitaste com a tua infâmia!
Já não és aquele moreno insinuante que
surrupiou a fortuna de meus pais, destruindo-lhes a vida e atirando-me no
meretrício abominável. A fortuna que te deu um nome foi edificada no pedestal
do crime.
Recordas-te das promessas mentirosas que
me fizeste? Envergonhada, abandonei a terra que me vira nascer para ganhar o
pão no mais horrendo comércio. Corri mundo, sem esquecer a tua perversidade e
sem conseguir afogar o meu infortúnio na taça dos prazeres.
Entretanto, o mundo foi teu. Réu de um
crime nefando, foste sacerdote da justiça; eu, a vítima desconhecida, fui
obrigada a sufocar a minha fraqueza nas sentinas sociais, onde os homens pagam
o tributo das suas misérias. Tiveste a sociedade, eu os bordéis. O triunfo e a
consideração te pertenceram; a mim coube o desprezo e a condenação. Meu lar foi
o hospital, donde se escapou o último gemido do meu peito.
Meus braços, que haviam nascidos para
acariciar os anjos de Deus, como dois galhos de árvores cheios de passarinhos,
foram por ti transformados em tentáculos de perdição. Eu poderia ter possuído
um lar, onde as crianças abençoassem os meus carinhos e onde um companheiro
laborioso se reconfortasse com o beijo da minha afeição. Venho te condenar, ó desalmado
assassino, em nome da justiça eterna que nos rege, acima dos homens. Há mais de
um lustro, espero-te nesta solidão indevassável, onde não poderás comprar a consciência
dos juizes... Viveste com o teu conforto, enquanto eu penava com a minha
miséria; mas, o inferno agora será de nós dois!...
O coronel fez uma pausa, enquanto eu
meditava naquela história.
- A mulher chorava – continuou ele – de
meter dó. Aproximei-me dela, não sendo notada, porém, minha presença. Olhei a
cruz modesta e carcomida que havia que havia sido arrancada poucas horas antes,
daqueles sete palmos de terra, para que ali fosse aberto um novo sepulcro, e,
não sei se por artes do acaso, nela estava escrito um nome com pregos amarelos,
já desfigurados pela ferrugem: R. S. – Orai por ela.
Por uma coincidência sinistra,
reencontravam-se os dois corpos e as duas almas. Procurei fazer tudo pelo
Antonico, mas quando atravessei com o olhar a terra que lhe cobria os despojos,
afigurou-se-me ver um monte de ossos que se moviam. Crânio, tíbias, úmero,
clavículas, se reuniam sob uma ação misteriosa e vi uma caveira chocalhando os
dentes de fúria, ao mesmo tempo em que umas falangetas de aço pareciam apertar
o pescoço do cadáver do meu amigo.
- E ele, coronel, isto é, o Espírito,
estava presente?
- Estava, sim. Presente e desperto. Lá o
deixei, sentindo os horrores daquela sufocação.
- Mas, e Deus, coronel? Onde estava Deus
que não se compadeceu do pecador arrependido?
O coronel me olhou, como se estivesse
interrogando a si mesmo, e declarou por fim:
- Homem, sei lá!... Acredito que Deus
tenha criado o mundo; porém, acho que a Terra ficou mesmo sob administração do
Diabo.
Humberto de
Campos.
(Recebida em Pedro Leopoldo a 9
de abril de 1935).
23:38
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