J.B.
(São Paulo, 3 de outubro de 1936)
No antigo Paço da Boa vista, nas
audiências dos sábados, quando recebia toda gente, atendeu D.Pedro II a um
negro velho, de carapinha branca, e em cujo rosto, enrugado pelo frio de muitos
invernos, se descobria o sinal de muita penas e muitos maus-tratos.
-Ah! Meu Senhor grande – exclamou o
infeliz – como é duro ser escravo!...
O magnânimo imperador encarou suas mãos
cansadas no leme da direção do povo e aquelas outras, engelhadas, na
excrescência dos calos adquiridos na rude tarefa das senzalas, e tranqüilizando-o
comovido:
-Oh! meu filho, tem paciência! Também sou
escravo dos meus deveres e eles são bem pesados... Teus infortúnios vão diminuir...
E mandou libertar o preto.
Mais tarde, nos primeiros tempos do seu
desterro, o bondoso monarca, a bordo do Alagoas, recebeu a visita do seu
ex-ministro; às primeiras interpelações de Ouro Preto, respondeu-lhe o grande
exilado:
-Em suma, estou satisfeito e tranqüilo.
E, aludindo à sua expatriação:
É a minha carta de alforria... Agora posso
ir onde quero.
A coroa era pesada demais para a cabeça do
monarca republicano.
Aos que perguntarem no mundo sobre a minha
posição em face da morte, direi que ele teve para mim a fulguração de um Treze
de Maio para os filhos de Angola.
A morte não veio buscar a minha alma,
quando esta se comprazia nas redes douradas da ilusão. A sua tesoura não me
cortou fios da mocidade e de sonho, porque eu não possuía senão neves brancas à
espera do sol para se desfazerem. O gelo dos meus desenganos necessitava desse
calor de realidade, que a morte espalha no caminho em que passa com a sua foice
derrubadora. Resisti, porém ao seu cerco como Aquiles no heroísmo indomável de
quem vê a destruição de suas muralhas e redutos. Na minha trincheira de sacos
de água quente, eu a vi chegar quase todos os dias... Mirava-me nas pupilas
chamejantes dos seus olhos, pedindo-lhe complacência e ela me sorria
consoladora nas suas promessas. Eu não podia, porém adivinhar o seu fundo
mistério, porque a dúvida obsidiava o meu espírito, enrodilhando-se no meu raciocínio
como tentáculos de um polvo.
E, na alegria bárbara, sentia-me
encurralado no sofrimento, como um lutador romano aureolado de rosas.
Triunfava da morte e como Ájax recolhi as
últimas esperanças no rochedo da minha dor, desafiando o tridente dos deuses.
A minha excessiva vigilância trouxe-me a
insônia, que arruinou a tranqüilidade dos meus últimos dias. Perseguido pela
surdez, já os meus olhos se apagavam como as derradeiras luzes de um navio soçobrando
em mar encapelado no silêncio da noite. Sombra, movendo-se dentro das sombras,
não me acovardei diante do abismo. Sem esmorecimentos atirei-me ao combate, não
para repelir mouros na costa, mas para erguer muito alto o coração, retalhado
nas pedras do caminho como um livro de experiências para os que vinham depois
dos meus passos, ou como a réstia luminosa que os faroleiros desabotoam na superfície
das águas, prevenindo os incautos dos perigos das sirtes traiçoeiras do oceano.
Muitos me supuseram corroído da lepra e de
vermina como se fosse Bento de Labre, raspando-me com a escudela de Jô. Eu,
porém estava apenas refletindo a claridade das estrelas do meu imenso
crepúsculo. Quando, me encontrava nessa faina de semear a resignação, a
primeira e última flor dos que atravessam o deserto das incertezas da vida, a
morte abeirou-se do meu leito; devagarinho, como alguém que temesse acordar um
menino doente. Esperou que tapassem com anestesia todas as janelas e
interstícios dos meus sentimentos. E quando o caos mais absoluto no meu
cérebro, záz! Cortou as algemas a que me conservava retido por amor aos outros
condenados, irmãos meus, reclusos no calabouço da vida. Adormeci nos seus
braços como um ébrio nas mãos de uma deusa. Despertando dessa letargia
momentânea, compreendi a realidade da vida, que eu negara, além dos ossos que
se enfeitam com os cravos rubros da carne.
- Humberto!... Humberto... exclamou uma
voz longínqua – recebe os que te enviam da Terra!
Arregalei os olhos com horror e com
enfado:
-Não! Não quero saber de panegíricos e
agora não me interessam as seções necrológicas dos jornais.
Enganas-te – repetiu – as homenagens da
convenção não se equilibram até aqui. A hipocrisia é como certos micróbios de
vida muito efêmera. Toma as preces que se elevaram por ti a Deus, dos peitos
sufocados, onde penetraste com as tuas exortações e conselhos. O sofrimento
retornou sobre o teu coração um cântaro de mel.
Vi descer de um ponto indeterminado do
espaço, braçadas de flores inebriantes como se fossem feitas de neblina
resplandecente, e escutei, envolvendo o meu nome pobre, orações tecidas com
suavidade e doçura. Ah! Eu não vira o céu e a sua corte de bem-aventurados; mas
Deus receberia aquelas deprecações no seu sólio de estrelas encantadas como a
hóstia simbólica do catolicismo se perfuma na onda envolvente dos aromas de um
turíbulo. Nossa Senhora deveria ouvi-las no seu trono de jasmins bordados de
ouro, contornado dos anjos que eternizam a sua glória.
Aspirei com força aqueles perfumes. Pude
locomover-me para investigar o reino das sobras, onde penso sem miolos na
cabeça. Amava e ainda sofria, reconhecendo-me no pórtico de uma nova luta.
Encontrei alguns amigos a quem apertei
fraternalmente as mãos. E voltei cá. Voltei para falar com os humildes e
infortunados, confundidos na poeira da estrada de suas existências, como frangalhos
de papel, rodopiando ao vento. Voltei para dizer aos que não pude interpretar
no meu ceticismo de sofredor:
- Não sois os candidatos ao casarão da
Praia Vermelha.[Hospício Nacional]. Plantai pois nas almas a palmeira da
esperança. Mais tarde ela descobrirá sobre as vossas cabeças encanecidas os
seus leques enseivados e verdes...
E posso acrescentar, como o neto de Marco
Aurélio, no tocante à morte que me arrebatou da prisão nevoenta da Terra:
- É a minha carta de alforria... Agora
posso ir onde quero.
Os amargores do mundo eram pesados demais para o
meu coração.
23:32
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